Era madrugada, aproximadamente 10 graus. Para quem estava acostumado com temperaturas altas de um sol impiedoso, naquela hora, a minha couraça tão resistente ao calor tornou-se frágil diante daqueles ventos que traziam um frio nórdico insuportável. Estávamos em sete, todos se conheciam há bastante tempo e sabíamos que aquele quinto dia de festa tinha nos levado a exaustão.
Compenetrados, olhávamos o horizonte a procura de uma luz, mais especificamente, a dos faróis do ônibus que nos levaria para casa, estávamos no ponto há mais de 40 minutos, os comentários sobre esses dias de folia esgotaram-se e nenhum veículo havia passado. Os olhos rachados com linhas vermelhas cor de fadiga, misturados a um teor simbólico de álcool anunciavam nossa derrota corporal.
Estava de costas quando as vozes silenciaram-se, depois de um breve intervalo de segundos, os sussurros quase inaudíveis eram verbalizados as pressas, como se conversar fosse inconveniente. Quando tento ficar a par da situação, vi meus companheiros levantarem-se prontamente, como se estivessem atrasados para algum compromisso, os acompanho e percebo que a orientação é deixar o local onde estávamos e atravessar a rua.
Depois de me situar, percebi que os comentários seguiam em direção à silhueta que se movia, até rapidamente, ao local que abandonamos. Ao passar por luzes isoladas de postes, percebi que era um homem com expressões sisudas e roupas surradas, e que não lhe permitiam aparentar menos que 35 anos. Era negro e tinha uma estatura mediana, calçava um chinelo bem desgastado e um short um azul desbotado; a camisa amarelada revela que o tempo também passou por ele, os cabelos despenteados que batiam nos ombros completava o quadro de mais um estereótipo que perambula os confins obscuros da sociedade.
Da mesma maneira de um ser mitológico, ele tornava-se invisível durante o dia, somente algumas pessoas problemáticas desprovidas de indiferença conseguem enxergá-lo pelas ruas. Ao cair da noite, a escuridão lhe dá forma, o medo era a cor que lhe faltava, e agora ele é perceptível e temido pelos olhos apáticos de horas atrás. Momento em pensávamos ter nos afastados do perigo iminente, do outro lado escutamos uma voz romper as sombras:
– “Eu não vou assaltar ninguém! Podem ficar aqui, não sou bandido. Não estou roubando ninguém. Vocês é que são ladrões, vocês é que estão roubando”.
A nossa atenção foi pega de surpresa, todos os sentidos voltaram-se para aquele homem que vociferava palavras à nossa direção. Não ficamos preocupados com o que era dito, mas se ele era capaz de atravessar a margem de segurança e preconceito que estabelecemos. Ele seguiu seu caminho na direção contrária repetindo as mesmas palavras para si, mas que ecoaram na minha cabeça e como crianças brincavam girando num carrossel.
Cessei minha seqüência de passos, não era por causa daquela corrente de ar frio que insistia em afugentar o sangue das extremidades, no entanto, minha consciência me conduziu a um fato aterrador: Aquela atitude conjunta, além de provar que a margem social é intransponível, (ao menos de fora para dentro), me fez notar que nós éramos os verdadeiros ladrões, mas de algo que não poderíamos devolver, negociar ou ressarcir, usurpamos-lhe a dignidade.
Olhei para trás, e senti o peso da verdade lançada por aquela silhueta sem destino no horizonte. Percebi que o preconceito estava engatilhado entre os meus dedos, e naquela noite, roubei. Senti-me um ladrão.